Thursday, March 03, 2005

Ausência Previsível

Artigo que enviei para o Jornal ZH
Vai uma enorme distância entre a verdade científica e sua aplicação prática, entre os princípios éticos e o comportamento habitual, entre a evidência de prioridade e a decisão política, entre o interesse social e o conflito com a ganância individual, entre a coragem em denunciar e a comodidade de se submeter ao poder e a interesses escusos.
O idealismo, o entusiasmo por um projeto, a dedicação por uma causa, facilmente nos afastam da realidade e fomentam ilusões, sonhando com a conquista fácil do cientificamente certo e politicamente correto.
O desenvolvimento é algo que se conquista lentamente, de maneira solidária e global. Podem acontecer fenômenos isolados que surpreendem, mas logo se percebe o freio provocado pela assimetria e pela desigualdade. Não nos afastamos tanto assim de um mundo que ao lado de belezas, riquezas e maravilhosas conquistas, acumula miséria, dependência, poluição, intolerância e violência.
Acaba de entrar em vigor para 57 países que já o ratificaram, o tratado pioneiro internacional auspiciado pelada Organização Mundial da Saúde sobre o Controle do Tabaco. Entre estes não se inclui o Brasil, embora tenha assinado, com outros 167, o protocolo inicial longamente discutido.
Nosso país já havia se antecipado e implementou várias medidas de saúde pública que outros somente agora irão discutir. Nos faltam, no entanto, políticas de proteção aos pequenos agricultores dependentes da produção do tabaco, na medida em que cair a demanda do produto por redução do consumo e da prevalência de fumantes pelo mundo afora. Especialmente neste particular ficaremos prejudicados por não sentarmos à mesa das negociações.
Era previsível a ausência - nesta hora - de um país, onde dirigentes desmentem na prática o discurso, onde acobertam a corrupção por motivos políticos, onde ainda se eliminam ambientalistas, onde parlamentares deixam-se levar em troca de vantagens salariais ou por pressões do poder econômico, onde ministros demitem auxiliares por detectarem e denunciarem defeitos na máquina administrativa. País com os maiores índices de desigualdade social e de desmatamento, que serve de entreposto para o tráfico internacional de drogas, que não tem pejo de justificar a não ratificação de uma convenção isenta de conflito de interesses, porque grande parte do impacto sobre a saúde e mortes vai ocorrer em populações de outros países, já que a metade da produção é exportada.
As explicações e a contextualização do fenômeno de nossa contemporização não nos confortam, nem nos deixam conformados, pois nossa vantagem inicial no controle racional e organizado do tabagismo, que tem servido de modelo para o resto do mundo, agora perde, e acrescenta mais um ponto negativo em nossa coleção de mazelas.
Mais cedo ou mais tarde teremos que sentar à mesa de discussões, mas enquanto isso a população brasileira e nossos agricultores terão que pagar mais caro pela indefinição política, ou pela opção de permanecer na retranca, ficando mais tempo sujeitos aos interesses escusos e ao poder econômico das grandes empresas, e isolado frente à especulação econômica internacional.

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